Gislaine Fusco Duarte é uma dessas pessoas apaixonadas por tudo relacionado à doação de órgãos. Formada em Enfermagem em 2004 pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), sentiu que esse seria seu caso de amor profissional quando, ainda na graduação, realizou estágio durante três anos na Comissão de Procura de Órgãos e Tecidos para Transplantes - Regional Maringá (COPOTT).
Naquela época, prometeu a si mesma que voltaria a trabalhar com essa especialidade. Dito e feito. Ela voltou e assumiu o cargo de coordenadora em 2011, onde está até hoje. Especialista na área de Captação e Transplante de Órgãos e Tecidos, nessa entrevista, a enfermeira conta sobre o trabalho que desenvolve e esclarece dúvidas a respeito do processo de doação e transplante de órgãos.

- Os hospitais contam com a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos (Cihdott). Essa equipe deve conter no mínimo três pessoas entre enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e médicos. São eles que entram em contato com a família do potencial doador para esclarecer todas as dúvidas. Diante da importância dessa comissão, como funcionam os treinamentos dos integrantes?
A entrevista familiar é o processo mais crítico e mais importante. Você pode fazer a identificação adequada do potencial doador, mantê-lo, ter toda a estrutura montada, mas se o profissional que realiza a entrevista não estiver preparado e a família sentir esse despreparo pode ir tudo por água abaixo. Tentamos identificar pessoas de dentro do hospital que tenham interesse pelo assunto, pois é preciso aptidão para falar com quem perdeu o ente querido.
Uma segunda questão seria os treinamentos. A gente busca ofertar o acolhimento familiar desde o momento em que o paciente grave é admitido no hospital. Tiramos as dúvidas, realizamos o acompanhamento dessa família durante o internamento e a entrevista familiar.
- Então, podemos dizer que a maneira como é comunicada a morte do ente querido aos familiares é um processo chave para a aceitação da doação de órgãos?
É uma fase muito importante. O óbito é muito ruim para a família, e a pessoa que comunica pode piorá-lo se não souber conversar. Então, a gente treina essas pessoas não só para convencer a doação, mas para estabelecer uma relação de ajuda. O jeito que a família foi recebida no hospital, se teve leito para tratamento ou não, se houve esclarecimentos a respeito da doença, se o médico foi ríspido ou foi atencioso, se o enfermeiro foi acolhedor, enfim, tudo isso pode interferir na decisão. A família doa quando entende que tudo foi feito para salvar o paciente.
- A morte encefálica acontece quando o cérebro da pessoa para de funcionar, mas o coração ainda continua batendo por conta dos medicamentos e aparelhos que a sustentam. No entanto, muitos familiares se recusam em aceitar a doação de órgãos neste caso, pois não entendem esse diagnóstico. Há aqueles que esperam por um milagre. Como enfrentar essa situação?
Uma coisa importante sobre o entendimento da morte encefálica é o conhecimento de toda a situação pela família. O médico deve ir falando se o paciente está grave ou não, se está piorando ou não, porque muitas vezes a família está esperando uma cura, mas o familiar está piorando a cada dia. Então, é muito importante a sinceridade e a honestidade por parte dos profissionais quanto à real situação. Outra coisa é comunicar à família que o paciente não está respondendo ao tratamento e que há suspeita que esteja no quadro de morte encefálica, para que haja tempo para pensar sobre o assunto. Toda essa comunicação faz com que a família entenda melhor. Há, ainda, uma outra questão que é mais cultural do que religiosa: mesmo entendendo a morte encefálica, há os que esperam por um milagre. Nesse caso, cabe a equipe, sem diminuir as questões religiosas, pedir para que um líder religioso da igreja dele acompanhe o diagnóstico.
- Em relação à estrutura de captação e transplante de órgãos, o Ministério da Saúde centraliza os transplantes nos hospitais de referência e regionaliza as captações, mas garante acesso a toda a população. Como funciona a captação dos órgãos?
Maringá, por exemplo, é referência para transplante de rim da macrorregião: Umuarama, Cianorte, Campo Mourão e mais 11 cidades do noroeste do Paraná. A cidade também é referência para transplante de córnea e de ossos. Já o transplante de fígado, pâncreas e coração, não. Para captação de coração, a nossa referência é Londrina; para o fígado, Curitiba. É uma estrutura adequada, mas não é de excelência, porque há as nossas limitações regionais.
- Por conta dessa falta de equipe especializada em captar qualquer órgão, pode acontecer de se perder uma doação?
Sim. A gente tenta esperar, estimula a manutenção do potencial doador e conversa com a família. Mas, pode ser que família esteja cansada de esperar, que quer o corpo para enterrar. Nesse caso, devolvemos o corpo para a família.
No primeiro semestre de 2016, de acordo com o Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), há 33.199 pessoas na lista de espera por um órgão. O maior número de espera é pelo rim, são 19.700. Por que esse número é tão grande?
Como a hemodiálise substitui a função do rim, o paciente consegue sobreviver mais tempo aguardando pelo órgão. Então, a fila vai aumentando. O que a gente percebe é que o rim é um órgão que sofre muito pela hipertensão e pela diabetes. A primeira é uma doença silenciosa; muitas vezes, as pessoas não sabem que têm e estão sofrendo há anos e, quando descobrem, o rim já está comprometido. Como a diabetes e a hipertensão são muito frequentes na nossa população, muitas pessoas não se tratam e acabam tendo doenças renais.

- O Ministério da Saúde orienta as equipes dos hospitais a não divulgarem quem foi a pessoa que recebeu a doação. Por quê?
Porque há várias histórias de conhecimentos mal sucedidos. Podem acontecer vínculos familiares inadequados. Por exemplo, eu sou mãe e meu filho faleceu; doei o coração dele para o seu filho. A gente se conhece, eu conheço o seu filho: ouço a batida do coração do meu filho no peito do seu. No Natal, quero passar com vocês. A família aceita. Outra vez, no carnaval, você resolve ir viajar e eu pergunto: “poxa vida, você viajou e nem me avisou?”. Então, posso te submeter a uma relação que não é natural, de querer projetar o meu filho no seu. Já tivemos situação em que o receptor se sentiu sufocado. Há também situações de barganha. De qualquer forma, não é proibido legalmente conhecer, os profissionais é que não garantem esse contato. O que ocorre é que, muitas vezes, as pessoas pesquisam pela internet e acabam descobrindo por contra própria.
- Quando a família do paciente aceita a doação, como funciona?
A partir do momento que a família doou, a gente pega todas as informações do paciente, insere num sistema que roda o ranking, ou seja, mostra as informações do doador, seleciona todos os prováveis receptores. Gera-se a lista das pessoas que estão na lista de espera. Curitiba faz a distribuição no Paraná e informa quem é a equipe que vai captar os órgãos. Se não vier equipe externa, organizamos a logística para que a equipe local vá até o hospital e faça a retirada. Feito isso, o órgão é encaminhado para o local de destino.